terça-feira, 16 de junho de 2020

Catarse


Tem um monstro que mora debaixo da minha cama.
Ele nunca sai durante o dia, pois ele teme a luz mais do que tudo. Sempre que tento o convencer a sair, ele se retorce e geme, se encolhendo para o canto mais afastado da parede.
O monstro debaixo da minha cama está sempre sentindo alguma coisa. Há noites em que ele chora de forma copiosa, reclamando da minha apatia com seu sofrimento enquanto tento dormir.
"Saia daí então."
Seus olhos, vermelhos e chorosos me olham de forma acusatória.
Olhando assim, ele nem mesmo parece tão grande ou assustador.
Só quando ele rasteja para fora, se aproveitando do escuro, eu consigo ver quão grande ele é, o quanto ele cresceu nos últimos tempos.
No escuro, ele prospera.
O monstro debaixo da minha cama diz que está sempre com raiva, e é a raiva que o faz chorar. É um sentimento constante e sem direção, sem um alvo. Ela fez residência em seu corpo, como o monstro fez residência debaixo da minha cama.
Quando a raiva aflora eu não consigo dormir, tentando impedir que o monstro grite.
Eu abafo sua voz, o empurro para baixo da cama.
"Se não ficar quieto, eu te jogo para a luz."
Sempre funciona, ele sempre se cala.
Eu consigo ser muito cruel com meu monstro.
O monstro debaixo da minha cama está sempre procurando alguma coisa.
Ele fuça meu quarto no meio da noite, jogando os papéis da mesa e me atrapalhando quando tenho que estudar. Ele bebe meu café e se pendura nas paredes, me pedindo para contar mais uma vez aquela velha história, sobre como a culpa é minha sobre tudo.
O monstro debaixo da minha cama e eu temos uma relação estranha de amizade. Uma amizade abusiva, em que o chuto para debaixo da cama e ele grita todas as minhas culpas e fala todos os meus medos.
"Está tudo bem." Ele sorri. "Podemos falar disso no escuro, ninguém vai saber."
Ele muda de rostos, tentando me fazer chorar, mas é ele que sempre chora.
Eu não choro há anos, nem sei se consigo mais chorar. Mas o monstro insiste.
O monstro debaixo da minha cama tem piedade de mim, esses dias ele me pediu para o deixar sair na luz.
"Se você sair, você vai morrer."
"Eu sei, mas não tem mais espaço aqui embaixo. Você me deixou crescer demais."
Eu não quero deixar meu monstro ir.
O monstro debaixo da minha cama se arrastou para a luz. Sua raiva fazendo as paredes tremerem, seu choro encharcando o quarto, em um rastro pelo caminho.
Fascinada, eu o vejo se encolher, o seguindo pela porta.
A luz do sol faz meus olhos lacrimejarem, depois de muito tempo.
Eu tento lembrar se é a mesma sensação de chorar.
Finalmente o monstro consegue soltar sua raiva em um grito, antes de finalmente desaparecer.
Quando retorno para o quarto, ainda ouço o eco dos gritos.
Eles se parecem com os meus. 
Lorem K Morais
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Vinho barato e Nessun Dorma

Ei vida, me responde uma coisa. Ou duas ou três, esses dias sou só perguntas para você.
Encarecidamente gostaria de saber a razão de ignorar todos os meus planos.
Você faz o que bem entende, não é? Sua ordinária. Volta aqui com todos os meus sonhos!
Me responde vida, qual o seu jogo?
Olhando para os cacos de quem deveria ser no chão, eu me pergunto como tanta gente se espanta com a morte. A morte é previsível, ela sempre vem. Já você vida, ah você!
Essa imprevisibilidade coloca todos nós de joelhos. Você gosta de ver a gente de joelhos, não é vida?
Já dizia o velho ditado Iídiche: O homem planeja e Deus ri.
Você é assim, vida, você está sempre rindo de cada plano meu. Jogando na minha cara o quanto não tenho controle de nada, além de como reagir ao que faz comigo.
E pior de tudo vida, é que você só me fode e ainda assim não vou te largar.
Por que eu largaria? Você consegue ser doce também, quando bem quer. Tão misteriosa, me incitando o bastante para eu querer saber o que vem depois.
Você é um livro sem sinopse, vida, mas com uma capa tão bonita que não posso não te tirar de estante.
Oh vida, me explica uma coisa, que direito você tem de brincar assim comigo? Eu fechei meu coração, você veio lá e abriu ele com um soco. O quebrou inteiro. E agora como faço? Eu tento fechar ele de volta de todo jeito, mas você vem de novo e de novo, sempre enviando alguém para fazer seu trabalho sujo. Eu não tenho chance alguma, tenho?
Oh vida, me diz aqui, por que você sempre anda presenteando a morte com as pessoas que eu mais quero bem? Essa sua paixão pela morte só me fode. E enquanto isso, meu coração fica escancarado, aberto, onde você sempre vai cortando a sutura que acabei de fazer.
Você vê, vida, até meu linguajar ficou chulo, mas acho que temos intimidade. Aquela intimidade de amantes de longa data, que se amam e se odeiam e não conseguem se largar. Você já está me fodendo não é mesmo? Então posso ficar livre das barreiras de linguagem, sua linda canalha.
Noite passada eu deitei no chão da cozinha ouvindo Nessun Dorma. Uma garrafa do vinho mais barato na mão, tomando goles de gargalo enquanto te xingava, pensando em sobreviver por mais uma noite dessas incertezas. Eu odeio incertezas! Estou sempre querendo saber o final da história ainda na metade, sou assim, entende? Com você não tem isso, para saber se melhora ou piora, tenho que ficar até o final, ler cada palavra, aguentar cada plot twist.
Oh vida, veja só, escrevi isso embriagada, de álcool e de tristeza.
Hoje o sol nasceu e ele estava lindo, como se estivesse o vendo pela primeira vez.
Vida, sua desgraçada, eu odeio que nunca faz o que espero, mas ainda assim, estou aqui.
Vou tentar ver o copo meio cheio.
E depois beber ele. Um brinde a você, sua ordinária. 
Lorem K Morais
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