sábado, 19 de setembro de 2020

Infecção

 A forma como eu assimilo um dano é muito louca.

Eu nunca processo de imediato, por isso a primeira reação sempre é muito fria, como se não tivesse sido nada. 

Dependendo do que for, eu consigo fazer o que for preciso no piloto automático até o pior da situação passar. 

Geralmente, só então, eu começo a processar. Sozinha.

E a primeira reação nunca é tristeza, mas ficar puta. Com raiva. Mas é aquela raiva silenciosa, a mais perigosa. E se não tem ninguém a quem direcionar a raiva, eu internalizo.

(Como resultado eu, no fundo, estou sempre com raiva. Tem raiva de anos que nunca deixei sair. Meus dentes se desgastam, meu músculo masseter hipertrofia, minha atm se fode. Sempre que um pouco daquilo sai, meu coração parece que vai sair pela boca. É tanta raiva que tem que sair de alguma forma. )

Chorar é a última parte do processo, mas é tão reprimido que passa em menos de um minuto e fica aquela sensação de que você começou a drenar um abscesso e parou no meio do caminho. Saiu um pouco da secreção, você sutura e manda para casa. Sem dreno, sem tirar tudo. Aquilo infesta dentro de vocês, deixa de ser local e vai invadindo outros tecidos. Sistematiza. 

Meu ciclo de dano sempre fica incompleto. 

Eu tenho a sensação que se for fazer terapia, que se um dia me abrirem para cuidar dessa infecção, eu vou me desmanchar em pus.


Lorem K Morais


quarta-feira, 8 de julho de 2020

Ataque de pânico


Tem um corvo me seguindo na rua, sumindo na periferia na minha visão.
Agora entendo Edgar Allan Poe, agora entendo.
‘Oh filha, ontem pensei que iria morrer durante o sono,
Meu coração faltou parar.’
Não me preocupei tanto quanto deveria.
‘Oh filha, esqueci como é ser gente,
Talvez eu seja também um corvo
Sumindo na visão de todo mundo.’
‘Por que não respondeu a mensagem?’
‘Meu telefone está quebrado.’
Tudo para não dizer a verdade.
O quanto estou engasgada e sufocando.
O corvo me contou que vou morrer,
Não me preocupei tanto quanto deveria.
É possível se afogar em ar?
Eu não sabia até então.
Talvez seja um astronauta sem meu capacete,
A terra nunca foi minha casa.
Onde é minha casa?
Alguém está batendo na porta do banheiro, era 3 da madrugada
Agora já é manhã.
Perdi horas conversando com o corvo.
Eu não sabia que era possível se afogar fora da água,
Mas o corvo me contou que não é tão raro.
Ele também me disse que eu iria morrer
Não me preocupei tanto quanto deveria.


[Lorem K Morais]



terça-feira, 16 de junho de 2020

Catarse


Tem um monstro que mora debaixo da minha cama.
Ele nunca sai durante o dia, pois ele teme a luz mais do que tudo. Sempre que tento o convencer a sair, ele se retorce e geme, se encolhendo para o canto mais afastado da parede.
O monstro debaixo da minha cama está sempre sentindo alguma coisa. Há noites em que ele chora de forma copiosa, reclamando da minha apatia com seu sofrimento enquanto tento dormir.
"Saia daí então."
Seus olhos, vermelhos e chorosos me olham de forma acusatória.
Olhando assim, ele nem mesmo parece tão grande ou assustador.
Só quando ele rasteja para fora, se aproveitando do escuro, eu consigo ver quão grande ele é, o quanto ele cresceu nos últimos tempos.
No escuro, ele prospera.
O monstro debaixo da minha cama diz que está sempre com raiva, e é a raiva que o faz chorar. É um sentimento constante e sem direção, sem um alvo. Ela fez residência em seu corpo, como o monstro fez residência debaixo da minha cama.
Quando a raiva aflora eu não consigo dormir, tentando impedir que o monstro grite.
Eu abafo sua voz, o empurro para baixo da cama.
"Se não ficar quieto, eu te jogo para a luz."
Sempre funciona, ele sempre se cala.
Eu consigo ser muito cruel com meu monstro.
O monstro debaixo da minha cama está sempre procurando alguma coisa.
Ele fuça meu quarto no meio da noite, jogando os papéis da mesa e me atrapalhando quando tenho que estudar. Ele bebe meu café e se pendura nas paredes, me pedindo para contar mais uma vez aquela velha história, sobre como a culpa é minha sobre tudo.
O monstro debaixo da minha cama e eu temos uma relação estranha de amizade. Uma amizade abusiva, em que o chuto para debaixo da cama e ele grita todas as minhas culpas e fala todos os meus medos.
"Está tudo bem." Ele sorri. "Podemos falar disso no escuro, ninguém vai saber."
Ele muda de rostos, tentando me fazer chorar, mas é ele que sempre chora.
Eu não choro há anos, nem sei se consigo mais chorar. Mas o monstro insiste.
O monstro debaixo da minha cama tem piedade de mim, esses dias ele me pediu para o deixar sair na luz.
"Se você sair, você vai morrer."
"Eu sei, mas não tem mais espaço aqui embaixo. Você me deixou crescer demais."
Eu não quero deixar meu monstro ir.
O monstro debaixo da minha cama se arrastou para a luz. Sua raiva fazendo as paredes tremerem, seu choro encharcando o quarto, em um rastro pelo caminho.
Fascinada, eu o vejo se encolher, o seguindo pela porta.
A luz do sol faz meus olhos lacrimejarem, depois de muito tempo.
Eu tento lembrar se é a mesma sensação de chorar.
Finalmente o monstro consegue soltar sua raiva em um grito, antes de finalmente desaparecer.
Quando retorno para o quarto, ainda ouço o eco dos gritos.
Eles se parecem com os meus. 
Lorem K Morais
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Vinho barato e Nessun Dorma

Ei vida, me responde uma coisa. Ou duas ou três, esses dias sou só perguntas para você.
Encarecidamente gostaria de saber a razão de ignorar todos os meus planos.
Você faz o que bem entende, não é? Sua ordinária. Volta aqui com todos os meus sonhos!
Me responde vida, qual o seu jogo?
Olhando para os cacos de quem deveria ser no chão, eu me pergunto como tanta gente se espanta com a morte. A morte é previsível, ela sempre vem. Já você vida, ah você!
Essa imprevisibilidade coloca todos nós de joelhos. Você gosta de ver a gente de joelhos, não é vida?
Já dizia o velho ditado Iídiche: O homem planeja e Deus ri.
Você é assim, vida, você está sempre rindo de cada plano meu. Jogando na minha cara o quanto não tenho controle de nada, além de como reagir ao que faz comigo.
E pior de tudo vida, é que você só me fode e ainda assim não vou te largar.
Por que eu largaria? Você consegue ser doce também, quando bem quer. Tão misteriosa, me incitando o bastante para eu querer saber o que vem depois.
Você é um livro sem sinopse, vida, mas com uma capa tão bonita que não posso não te tirar de estante.
Oh vida, me explica uma coisa, que direito você tem de brincar assim comigo? Eu fechei meu coração, você veio lá e abriu ele com um soco. O quebrou inteiro. E agora como faço? Eu tento fechar ele de volta de todo jeito, mas você vem de novo e de novo, sempre enviando alguém para fazer seu trabalho sujo. Eu não tenho chance alguma, tenho?
Oh vida, me diz aqui, por que você sempre anda presenteando a morte com as pessoas que eu mais quero bem? Essa sua paixão pela morte só me fode. E enquanto isso, meu coração fica escancarado, aberto, onde você sempre vai cortando a sutura que acabei de fazer.
Você vê, vida, até meu linguajar ficou chulo, mas acho que temos intimidade. Aquela intimidade de amantes de longa data, que se amam e se odeiam e não conseguem se largar. Você já está me fodendo não é mesmo? Então posso ficar livre das barreiras de linguagem, sua linda canalha.
Noite passada eu deitei no chão da cozinha ouvindo Nessun Dorma. Uma garrafa do vinho mais barato na mão, tomando goles de gargalo enquanto te xingava, pensando em sobreviver por mais uma noite dessas incertezas. Eu odeio incertezas! Estou sempre querendo saber o final da história ainda na metade, sou assim, entende? Com você não tem isso, para saber se melhora ou piora, tenho que ficar até o final, ler cada palavra, aguentar cada plot twist.
Oh vida, veja só, escrevi isso embriagada, de álcool e de tristeza.
Hoje o sol nasceu e ele estava lindo, como se estivesse o vendo pela primeira vez.
Vida, sua desgraçada, eu odeio que nunca faz o que espero, mas ainda assim, estou aqui.
Vou tentar ver o copo meio cheio.
E depois beber ele. Um brinde a você, sua ordinária. 
Lorem K Morais
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segunda-feira, 2 de março de 2020

Adeus, prodígio



Um olá para todos os prodígios que nunca se tornaram gênios.
Do fundo do coração, eu te entendo.
Eu entendo todo o peso do que poderia ter sido. Como é olhar para trás e ver todo aquele potencial perdido. De pensar no seu antigo eu, com olhos brilhantes e um futuro tão glamouroso pela frente e se achar tão pequeno agora: Um adulto medíocre e perdido, tentando sobreviver no campo de batalha na vida.
Como foi perceber que sempre foi o peixe maior dentro de uma poça? Como foi chegar no mar e tentar não ser engolido?
Verdade, eu te sinto!
Eu sinto quando penso em todos os familiares e professores que diziam o quanto você era especial e iria longe, só para hoje achar que mal conseguiu virar a esquina na vida que queria.
Eu sinto quando penso em toda a expectativa quebrada de todos, mas principalmente a de si mesmo. Todas as ideias que morreram ainda no berço, os sonhos que não eram nada mais que mariposas: lindas, esvoaçantes, mas de curta vida.
Amigo, eu também gastei todo o meu combustível na partida e fiquei na mão no meio do caminho. Me apressei e agora estou seu fôlego e tão exausta. Eu lembro que tinha um plano, mas com tantos desvios de repente ele não faz mais sentido algum e agora só quero chegar a qualquer lugar.
Veja, eu era uma criança incrível, tudo bem? Hoje me sinto só um adulto patético em toda a minha normalidade. Eu também penso em tudo que poderia ser, se todo esse potencial ainda está aqui dentro, coberto e sufocado por tantas dúvidas e exaustão e medo de tudo.
Um alô para todo mundo que se sentia especial e queria mudar o mundo e hoje sente dificuldades e se acha incapaz de sobreviver sozinho. Que não consegue nem se salvar e há certos dias que espera que o mundo queime, porque sentir dói demais. Se importar dói demais. Que teve que desistir de tanta coisa, porque os obstáculos se tornaram impossíveis de ultrapassar. 
Para todo mundo que sente que teria vergonha de encarar a criança que foi no espelho e dizer "Oh, não deu. Foi mal."  Para todo mundo que acha que se tornou o tipo de adulto que sua criança de antes odiaria e acharia chato. Para todo mundo que queria desbravar a vida e tem certos dias que nem sabe o que está mais fazendo aqui.
Eu também fujo das medalhas na parede da casa e me enrolo com perguntas que quando criança poderia responder, vejo os enredos das coisas que criava e penso que era muito mais inteligente e brilhante do que sou agora.
Eu também penso em como era menos rude, menos cínica, mais empática, com menos cicatrizes e mais propensão a perdoar e seguir em frente, enquanto hoje só sufoco meu medo e minha amargura em memes, humor negro e escolhas erradas.
Eu era melhor, quebrei a ordem de que tudo evolui com um tempo: algumas coisas só deterioram. Eu sou apenas uma sombra do que poderia ter sido. Todo o peso da expectativa me colocou no chão, se tornou demais para o que aquelas asas podiam suportar.
E agora cá estou, rastejando nos meus melhores dias. E isso, meu amigo, é o pior pesadelo para quem um dia já conseguiu voar.
Eu era uma criança prodígio, hoje sou um jovem adulto meramente funcional.
Bem-vindo ao clube.
Lorem K Morais
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quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Pseudópodes

                                                         
Lorem K Morais
Eu disse que era assexual,
Ele me perguntou se eu era uma ameba.
Com uma risada alta de ‘você não sabe o que fala.’
Eu observei os carros passarem da janela enquanto ele falava e falava.
Talvez seja uma ameba, um parasita que pode mudar de forma. 
Estou sempre mudando de forma, me encaixando em cada espaço que me derem.
Estou lá, até me percebam e me expurguem. 
Não é fácil, essa vida de ameba. 
“Vem cá, mas me dá um beijo.”
Amebas não beijam. 
Amebas observam de longe e se locomovem com seus pseudópodes.
Ameba imagina beijar ele como beijar o espelho de um banheiro,
troca de bactérias e frieza. 
“Não, não leve pelo lado pessoal.”
“Vem cá, deixa eu segurar sua mão suada por alguns segundos
E fingir que essa noite não é um trem descarrilhado.” 
Ameba pensa quem foi a primeira pessoa
Que teve a ideia de enfiar a língua na garganta da outra.
Deve ter sido uma situação engraçada. 
Ameba e ele pediram a conta em um silêncio desconfortável. 
Mais um expurgo de uma ameba.
Ao chegar em casa eu tive um pesadelo em que me dividia em duas.
E ela tomava todo o meu café e não me sobrava nada. 

Vasculhe

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