terça-feira, 18 de maio de 2010

A Carta


Eu sabia que estava sonhando, por que aquele lugar era familiar de meus antigos sonhos.
Lá estava a rua escura, de calçamento úmido de exalava um cheiro horrível de mofo e lixo. Era um bairro pobre de alguma cidade antiga, onde os postes de luz ainda levavam características próprias dos séculos passados: Todos eram iluminados por lampiões a óleo, que deixavam o ambiente com um ar tenebroso e triste. Porém eu não estava com medo, e tão pouco hesitava pois sabia que sonhava e que a qualquer hora despertaria, e essa consciência estranha de sonhar nunca havia me tomado antes.
Eu segui por entre a rua escura, e olhava no meu relógio de pulso estranhamente antigo onde passava da uma da manhã. Aliás, as minhas roupas pesadas também me eram estranhas, e eu carregava na mão uma carta que deveria entregar e não sabia ao certo a quem.
Caminhei até ficar em frente a uma casa velha, se assemelhando a um cortiço. Reconheci aquele lugar também de um sonho antigo e absurdo que me perseguira por anos , e que agora, apesar do tempo me retornava com nitidez. Mas diferente do outro sonho em que acordava antes de poder entrar na casa velha, dessa vez consegui entrar ao empurrar a porta levemente. Ela estava destrancada, e de dentro da casa fluiu um mau cheiro e uma onda de murmúrios.
A casa por dentro era clara, cheia de lampiões acesos por todas as paredes cobertas por um papel de parede desbotado. Chão de madeira estalava a meus pés, e eu segui o barulho de vozes até um saguão velho. Logo que entrei no recinto, notei a pequena roda de pessoas que conversavam assustadas e olhavam para cima da escada de madeira podre que seguia. Havia, dentre outros que pareciam borrados a mim, uma menina de cabelos ruivos que se encolhia nos braços de uma mulher morena que chorava. Ninguém parecia me notar, e só ao tentar falar com elas e perguntar o que ocorria, notei que ninguém se quer me enxergava ali. Eu era apenas uma telespectadora. Meu trabalho ali, de algum modo era assistir apenas.
E então o barulho que vinha da escada se intensificou, e começou a se aproximar. Era um grito pavoroso que arrepiou minha espinha. Então alguém ao meu lado fez o sinal da cruz e murmurou: “Vem a bruxa.”
A mulher morena lançou um olhar horrível em direção a voz, enquanto tampava os ouvidos da menina.
E então eu a vi.
Ela descia as escadas, segura entre os braços de dois homens enquanto esperneava e gritava coisas sem sentido. Seus cabelos desgrenhados eram de um negro, que se apagava em alguns pontos pelos cabelos grisalhos. Seus olhos eram fundos e vidrados,e a boca parecia uma linha dura na face.
As pessoas se afastavam da escada enquanto ela era levada a força para fora pelos homens.
A menina gritou ao vê-la, mas não era de medo. Queria correr até ela mas foi segura pela morena que lhe acalentou.
A mulher que era levada olhou para a menina, e seus olhos vidrados eram assustadores. De repente ela se soltou dos homens e os derrubou, sua força era absurda na situação.
Ela correu em direção a menina. E meu coração pareceu parar quando ela olhou em minha direção,e por um momento pensei que ela estivesse me vendo. Porém, ela passou por mim sem tocar-me
”Segurem a louca!”
“Não deixem que ela se aproxime! Segurem a louca! Pare ela! Está em surto!”
Os gritos pareciam se misturar enquanto a mulher arrancava algo do pescoço e jogava em direção a menina, ao mesmo tempo em que a seguravam e levava porta a fora em meio a gritos.
Eu fiquei parada, tremendo.
Vi a menina se soltar da mulher morena e pegar do chão o objeto que ela jogara e apertá-lo contra o peito.
Era um cordão de prata com uma pedra roxa no meio.
“Ana Beth”
A morena sussurrou para ela enquanto os outros ao redor pareciam sumir para mim, como se o sono estivesse acabando.
“Ana Beth, não chore...”
De repente meus olhos caíram no papel amassado em minha mão.
Estava escrito:
Para Ana Beth
E eu acordei
No meu quarto. E não estava sobressaltada como em outras noites, mas o sonho não me deixou mais dormir, e tão pouco retornou.
O rosto da mulher não me saia da mente, e então peguei grafite e papel e tentei tira-lo de lá a força.
Consegui, mas restou em mim a estranha sensação de que faltava algo. Algo que não cumprira.E a madrugada seguiu, enquanto eu me perguntava o que havia na carta.
A carta que nunca entregaria. 



Desenho da mulher dita louca feito por mim na noite de 17 de abril de 2010.
(grafite sobre papel)
Lorem Krsna

Um comentário:

Dúvidas? Indagações? Palpites? Ideias? Epifanias?
Só para comentar mesmo?
Tudo bem!
A vontade!
Aberta a opiniões.
A agradeço a sua visita ao anjo sonhador.
Espero que volte sempre que quiser, serás bem-vindo.

Vasculhe

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...